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São Paulo, uma cidade estrangeira

Ricardo Soares*

Voltei porque vi tantas coisas de passagem por mais que eu ficasse muito tempo nos lugares de passagens. Voltei e vi tantas cidades estrangeiras que acabei por achar a minha cidade também estrangeira. Como se dela me perdesse, como se me desvinculasse de suas raízes, como se me plantasse em outro vaso que não o original.

Agora voltei para a minha cidade embora não seja exatamente nela e sim em suas cercanias porque apesar de nascido na minha cidade estrangeira vivi 28 anos nas cercanias dela. Primeiro no ABC paulista depois na desoladora Carapicuíba onde habito num oásis em meio a muito abandono e feiura.  Mas o ir e vir, a faina, as desilusões e alegrias sempre foram em São Paulo, a minha cidade estrangeira.

Como na canção Um gosto de sol de Ronaldo Bastos e Milton Nascimento, que fala da tal “cidade estrangeira”, lembro dos sonhos que eu tinha e esqueci sobre a mesa  com bagos de feijão submergindo em copos d’água por noites a fio e tecendo um poema juvenil. Dormi assim ao redor de uma fruteira e reconheci agora a minha cidade estrangeira tão feia, tão malcuidada, injusta, largada, mal-amada.

Não consigo mais ver as belezas da minha cidade estrangeira. Poucos parques, tanta gente triste, outro tanto de gente violenta, falta de verde, de verdade, de cuidado. Um projeto de “descivilização” levado a cabo por anos na própria cidade e no próprio estado que habito rem de uma lógica de estradas, prédios, pedágios, asfalto, viadutos, anéis viários, tudo o que contemple o “deus mercado” e o “deus automóvel”. Um projeto liberal ou neoliberal, chamem como quiser, mas que só dá asas a iniciativa privada e ao tal nefasto empreendedorismo que faz crer que para você ser alguém de verdade tem que empreender.

Não me reconheço nessa cidade feia, ultrajada com um centro velho lindo e detonado. Não me reconheço nos ideais que acham que lazer é ir ao shopping para comprar e comer a comida requentada e fedida que exala das praças de alimentação. Isso é lazer, isso é vida? Consumir para existir?

São Paulo, a “minha” cidade estrangeira, hoje me deixa menos a vontade do que muitas cidades que percorro e percorri durante a vida profissional ou pessoal. O sol na sombra se esquece dormindo em lembranças antigas porque vai ver que a minha lua em câncer dá prevalência ao saudosismo. Por isso, toda essa volta no texto, foi para chegar na decisão que os paulistanos tem que tomar no domingo. Ou escolher entre mais do mesmo, o projeto de um tosco “tucanistão” que já dura décadas, ou a renovação com um olhar no mínimo mais humanista. E não me venham falar de inexperiência. Porque a essa altura prefiro um “inexperiente” jovem com visão mais generosa do que a “experiência” de um jovem velho, marionete de outros que ajudaram a transformar a “nossa” São Paulo numa triste, desoladora e acachapante cidade estrangeira. Quero me sentir em casa de novo. Quero por fim a essa sina forasteira que se acopla a muitos de nós almas nativas deserdadas do sonho feliz de cidade.

*Ricardo Soares é escritor, roteirista, jornalista e diretor de tv. Publicou 9 livros, dirigiu 12 documentários.

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