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Reencarnações

Ricardo Soares*

Das duas primeiras vezes que aqui vivi o clima não era tão hostil. Lembro de retalhos desses tempos perdidos, pequenas cenas, sensações, quase abstrações de horas idas e vividas. Uma delas nos primeiros tempos do primeiro ano da República recém proclamada por um golpe do limitadíssimo marechal Deodoro da Fonseca, pouco tempo após a “libertação” que nada libertou os escravos em 1888.

Lembro que fui abolicionista, tinha planos elásticos para o futuro, um ideal de nação unida e miscigenada e me vejo com uma navalha na mão no bairro da Lapa carioca, não porque estivesse querendo sangrar alguém, mas porque fazia a minha própria barba e a de amigos, muito embora tenha quase a certeza de que não era um barbeiro .

Passam cenas rápidas de rendez-vous, prostitutas francesas, alfazemas, tilburys, charutos, espartilhos e até a gripe espanhola que, ao que me consta, me levou da primeira vida aqui.

A segunda vida me surge em fragmentos mais claros, mais longos, menos obscuros e mais opulentos até pela presença constante de uma amante farta em carnes, uma “senhoura” eslava que me servia lá para os lados de Santa Tereza, no Rio de Janeiro, porque , mais uma vez, vim nascer na capital fluminense.

Era no tempo da ditadura getulista do Estado Novo e eu fazia oposição ao governo dele. Talvez fosse uma espécie de advogado ou ativista, um termo que então sequer existia. Mas me vejo em ternos de bons cortes, com bons drinks sempre à mão, uma espécie de dândi esclarecido que morreu atropelado antes do fim da Segunda Guerra Mundial. Mas, como na encarnação da primeira República, eu tinha esperança nos dias melhores que viriam.

Agora, na terceira encarnação, concebido no Rio, mas vivente de São Paulo, não vejo alento em nada, perspectiva em nada e como advogado de um sindicato sei que estamos diante do pior governo que esse país já teve. Ando com a saúde e as finanças abaladas, vejo brotar fascismo pra todo lado e pululam imbecis de todos os matizes. Sou “escuro” como dizem pejorativamente e amo a uma mulher clara que a mim me ama sem pedir nada ou quase nada, o que é o mesmo, mas não igual, como mais ou menos diria o compositor cubano Silvio Rodriguez.

Os viadutos não sorriem, os bêbados nem trajam luto porque há muitos e muitos mortos por essa nova pandemia, fruto de nosso descaso com a natureza.  Um desses bêbados me oferece um pouco de macarrão com frango que ele tira de uma “quentinha”. Olho para ele e me vejo em uma quarta encarnação. Mas clamo aos céus pelo meu direito de escolher onde nascer de novo da próxima vez. Não quero voltar para o Brasil que, até provas em contrário, não está na locomotiva dos dias melhores que virão.

*Ricardo Soares é escritor, autor de nove livros. O mais recente ‘Devo a eles um romance’, editora Penalux.

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