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Procissão de domésticas

Ricardo Soares*

É só acordar muito cedo e bater perna pela região classe média onde você mora em qualquer capital desse país. Logo você vai ver uma legião delas descendo de ônibus que as trazem de periferias distantes ou mesmo vindo a pé, chinelas nos pés, num passo geralmente apressado porque não querem chegar atrasadas senão as patroas ralham quando não descontam o atraso do mirrado salário.

Seja no bairro Duque de Caxias, em Cuiabá, no condomínio Fazendinha na Granja Viana, grande São Paulo ou mesmo no Leme, no Rio, na Savassi ou Santo Antônio, em Belo Horizonte, é mesmo muito fácil ver a procissão matinal das domésticas de olhares aflitos, roupas surradas, suadas pela pressa logo de manhã, a levarem nas costas o peso dos compromissos financeiros e quase nenhum alento em relação ao próprio futuro. Daí que se esforçam mais porque querem dar aos filhos tudo aquilo que não tiveram.

Não é de hoje que essas procissões matinais me incomodam profundamente. O exército de excluídas indo rumo ao sacrifício de um dia puxado e comida fria pois, como serviçais, comem o que sobrou da casa grande e sempre depois de todos. Mesmo que tenha acordado mais cedo, mesmo que tenha pego três conduções para chegar ao trabalho, mesmo que tenha dormido mal ou apanhado dos companheiros ou de terem deixado crianças doentes em casa.

Não são poucos os gringos com empatia que acham bizarro essa função de “domésticas”, criação com o perfil que tem, tipicamente brasileira e absolutamente normatizada, assimilada, eternizada. Cada família classe média para cima tem sua “doméstica” de estimação e dizem inclusive que elas fazem parte da dita “família“. Só que não, como bem sabemos e foi retratado no filme de Anna Muylaert, Que horas ela volta?.

Antes que algum maroto pergunte se sou contra ou a favor da instituição “domésticas” e vá adiante perguntando se eu não faço uso desses serviços já respondo que sim. E a minha também é conhecida por Val, como a protagonista do filme da Muylaert. E percebam aqui o ato falho embutido no meu próprio texto que embute o possessivo “minha” ao referir à Val lá de casa.

Val não é minha nem de ninguém. É mais uma trabalhadora brasileira, baiana, separada, mãe de um menino que tem nove anos para o qual ela também quer um futuro melhor. Val trabalha de segunda a sexta num condomínio de luxo para uma mulher rica e, como se não bastasse, trabalha lá em casa no sábado. Folga, quando dá, é só domingo.

Pois então. O que muda uma crônica que seu patrão faça sobre ela ou as milhares de domésticas brasileiras? Absolutamente nada. Talvez só pretenda chamar a todos nós, o autor e seus leitores, a uma reflexão sobre o tema. 

Toda manhã, faça chuva ou sol, a procissão de domésticas que caminha pelas grandes cidades brasileiras é uma cena justa, normal, não tem nada de mal? Ou somos milhões de caras de pau que aceitam isso como se digno fosse, absolutamente corriqueiro num país que virou um chiqueiro?

*Ricardo Soares é diretor de TV, roteirista, jornalista e escritor. Publicou 9 livros. O mais recente é o ‘Devo a eles um romance’

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