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Justiça para quem? Agressões a negros em supermercados não têm punição severa

Atualizada às 10h05

Em casos famosos de violência contra negros em supermercados, a maioria dos agressores segue sem punição e as empresas não foram responsabilizadas na Justiça. É o que mostra levantamento em outros processos em que as vítimas foram torturadas, agredidas ou mortas por funcionários das lojas.

Na véspera do Dia da Consciência Negra, João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, foi espancado até a morte por seguranças do Carrefour, em Porto Alegre. O caso deu início a protestos no país e reacendeu a mobilização do “Vidas Negras Importam”.

No Rio, outro assassinato de um cliente por seguranças segue sem julgamento mais de um ano e meio depois. Em fevereiro de 2019, o jovem negro Pedro Henrique Gonzaga, de 19 anos, foi asfixiado na frente da mãe por um segurança de uma unidade do Extra da Barra da Tijuca, zona oeste da cidade. O vigilante imobilizou Gonzaga e permaneceu quatro minutos sobre o jovem mesmo sendo alertado por vários clientes de que o jovem estava sendo sufocado.

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Outro vigilante do estabelecimento observou a cena e nada fez para impedir a agressão. Ambos foram denunciados pelo Ministério Público do Rio por homicídio doloso qualificado, denúncia aceita pela Justiça em setembro deste ano.

O julgamento, no entanto, não tem data para ocorrer e os dois réus aguardam em liberdade. Está marcada para junho do ano que vem a próxima audiência do processo, de instrução para o julgamento, onde serão colhidos depoimentos das partes.

Outro caso ainda sem punição é do então desempregado Fábio Rodrigo Hermenegildo, de 38 anos. Em março de 2018, ele foi vítima de choques elétricos e golpes de cabo de vassoura no Extra Morumbi, na zona sul de São Paulo, após ser flagrado tentando furtar carne. Levado a um aposento, ele teria sido amordaçado, amarrado e obrigado a sentar, sem calça, em uma poça d’água. A sessão de espancamento foi filmada pelos próprios agressores.

O Ministério Público (MPE-SP) ofereceu denúncia por tortura contra seis pessoas. Mais de dois anos depois, porém, um dos réus morreu. Os outros cinco já deixaram a cadeia e respondem em liberdade. A próxima audiência na Justiça só deve ocorrer em junho de 2021.

O advogado Claudiney da Silva Leopoldino diz que não houve reparação financeira por parte do mercado. Para ele, casos como o do seu cliente também enfrentam resistência para que a Justiça aceite a tese de tortura cometida por seguranças privados. “A lei foi pensada como se só o Estado praticasse esse tipo de crime, e não o particular”.

Considerada crime hediondo, a tortura tem pena máxima de 8 anos de prisão. Nos tribunais, as acusações acabam virando “lesão corporal”, delito mais brando e com previsão de até cinco anos de cadeia em casos graves.

Foi o que ocorreu no processo do jovem negro de 17 anos, agredido no Supermercado Ricoy, zona sul paulistana, em 2019. Após tentar furtar chocolate, ele foi despido, amarrado e açoitado por dois seguranças. A Justiça inocentou os agressores por tortura e condenou por lesão corporal, cárcere privado e divulgação de cena de nudez. Os crimes somaram, no máximo, 3 anos e 10 meses de prisão.

A pena mais branda facilitou a progressão de regime – um deles já deve ser posto em liberdade em 15 dias. “Infelizmente, há esse tipo de interpretação equivocada de setores do Judiciário, que só consideram que um agente do Estado exerce poder e autoridade”, diz o advogado Ariel de Castro. “Também há uma pressão muito grande do poder econômico para esse sistema de impunidade”.

Indenização

Em 2019, Luís Carlos Gomes, negro e deficiente físico, foi vítima de agressões e recebeu um mata-leão no Carrefour em São Bernardo (SP). O motivo teria sido porque abriu uma cerveja antes de passar pelo caixa. O caso nem chegou a virar denúncia criminal e só a ação cível prosperou.

Em junho, TJ-SP mandou o supermercado pagar R$ 23 mil por danos morais. Para comparar, o valor representa menos de 2,5% do R$ 1 milhão de multa que a rede recebeu pela cadela Manchinha, morta em uma loja de Osasco em 2018. A vítima aceitou o valor, mas a indenização ainda não foi executada. “Sem desmerecer a vida de um ser vivo, mas a Justiça atribui valor de R$ 1 milhão para um animal e de R$ 20 mil para um ser humano?”, diz a advogada Adriana Crystina Soares Jarenco, que representa Gomes.

Era o 1º dia de PM no Carrefour

Preso após matar João Alberto Freitas, de 40 anos, o policial militar temporário Giovane Gaspar da Silva, de 24 anos, trabalhava pela primeira vez como segurança terceirizado do Carrefour no dia do crime. Ele foi contratado para suprir a falta de outro vigia, em jornada de 12 horas. Silva e o outro segurança foram filmados durante o espancamento e afastados do Carrefour. A empresa informou ontem ter afastado também a funcionária de blusa branca, que aparece no vídeo com cenas da agressão e não interfere.

“Aquele tinha sido o primeiro dia dele (Silva) no mercado e o pior, faltava apenas uma hora para ele ir embora. Na verdade, ele foi contratado por um outro colega, que iria realizar o pagamento do serviço diretamente para ele”, disse o advogado do PM temporário, David Leal.

Embora seja vedada atuação de PMs no horário de folga, Silva aceitou o serviço para ampliar a renda familiar, afirmou o advogado. “Ele viu que o bico não servia para ele, mas quis complementar a renda. Ficou com receio de aceitar o trabalho, que acaba sendo mal visto. Ele estudava para concurso e tinha o sonho de ser policial rodoviário federal. Foi no primeiro dia que ocorreu aquela grande fatalidade”, disse.

Ele afirma que Silva não tinha vínculo empregatício com o Grupo Vector, empresa responsável pela fiscalização na unidade do Carrefour. Já o Grupo Vector disse que ele havia sido contratado no dia 19, estava devidamente registrado e teve o vínculo rescindido no dia seguinte ao assassinato.

Leal diz que o caso é uma “fatalidade” e diverge da prisão em flagrante. Os dois seguranças vão responder por homicídio triplamente qualificado – por motivo fútil, asfixia e recurso que impossibilitou a defesa da vítima. Na noite de quinta, eles ficaram em silêncio durante a detenção. “Houve homicídio culposo provavelmente, pela pressão exercida quando ele foi imobilizado. Meu cliente atuou para conter a agressão. Não teve nenhum cunho racial”.

A reportagem não conseguiu contato com a defesa do outro vigia, Magno Braz Borges. O Carrefour não informou a identidade da outra funcionária afastada. A Polícia Civil já havia dito que pode investigar as outras pessoas vistas na cena do crime por omissão de socorro.

“Já ouvimos mais de vinte pessoas no inquérito e vamos seguir realizando as diligências. “, disse Roberta Bertoldo, a delegada responsável pelo caso. A investigação tem prazo de 10 dias para concluir o inquérito a partir da instauração. Caso contrário, os trabalhos podem ser estendidos por mais 15 dias.

Reabertura

A loja do Carrefour onde João Alberto foi morto reabriu ontem (23) em Porto Alegre, após três dias fechada. No local, era possível ver rastros da manifestação de sexta, em que houve invasão e depredação do estabelecimento. Lojistas e frequentadores do supermercado relatam que já flagraram excessos dos vigilantes.

Pichações, cartazes e flores em homenagem à vítima eram visíveis nas grades do Carrefour. Na parte interna, o clima era de tensão; funcionários com semblante preocupado trocavam poucas palavras e o movimento era bastante abaixo do normal. 

Ênio Dagoberto de Lima, de 67, é ambulante monta sua barraca com chapéus e camisetas na parte externa da loja. Segundo ele, o comportamento agressivo dos seguranças já era perceptível. “Sempre tinha umas mulheres que vendiam macela (planta). Eu vi vezes em que esses dois seguranças colocaram elas para rua com as crianças e tudo”, diz.

Em nota, o Carrefour disse dar assistência aos lojistas. Para as lojas com avarias, disse estar em contato com os responsáveis para avaliar medidas.

Carrefour anuncia fundo para combater racismo

O Carrefour Brasil reiterou, em Fato Relevante divulgado nesta terça-feira na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que está apurando todos os fatos e tomando as providências cabíveis sobre a morte do soldador João Alberto Silveira Freitas, assassinado em uma loja do grupo em Porto Alegre (RS), na última semana.

“A companhia não compactua com esse tipo de atitude e, como mencionado acima, está adotando todas as medidas cabíveis para responsabilizar os envolvidos nesse ato criminoso”, diz o documento assinado por Sébastien Durchon, diretor vice-presidente de Finanças e Diretor de Relações com Investidores do Carrefour, destacando que foi rescindido o contrato local com a empresa que responde pelos seguranças que cometeram a agressão.

Entre as medidas tomadas pela empresa, está a reversão de todo o resultado das lojas do grupo na última sexta-feira (20) para projetos de combate ao racismo no Brasil. “Essa quantia obviamente não reduz a perda irreparável de uma vida, mas é um esforço para ajudar a evitar que isso se repita”, comenta. Também reforçaram treinamento com colaboradores próprios e funcionários terceirizados.

O Carrefour destacou a criação de um fundo para promover a inclusão racial e o combate ao racismo, com aporte inicial de R$ 25 milhões, anunciada na noite de ontem, e que está trabalhando em um conjunto adicional de ações e iniciativas em prol da cultura do respeito e da diversidade.

“O Grupo Carrefour Brasil continuará acompanhando os desdobramentos do caso e oferecendo todo suporte para as autoridades locais, e reforça seu compromisso de transparência na divulgação de informações a seus acionistas, investidores e ao mercado em geral”, finaliza a empresa.

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