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Ser cristão em uma sociedade relacional

Todas as sociedades humanas têm seus códigos culturais e seu sistema de normas e não temos o objetivo de aqui apontar qual seja correto, melhor ou exemplar. Nosso afã é pensar como algumas características culturais estão presentes na sociedade brasileira e impactam no cotidiano da vida cristã, enfatizando a primazia da palavra de Deus.

O Brasil não estava à espera de Pedro Álvares Cabral, isto é, quando ele e sua esquadra chegaram ao território, em 1500, havia um contingente populacional que o habitava e possuía uma organização social e política, uma cosmovisão e cultura que regiam seu cotidiano e dirigiam suas práticas e seu modo de sobrevivência. Sabemos que o encontro entre os povos nativos e os portugueses não foi pacífico, nem mesmo cortês de ambos os lados; dantes envolveu violência, desestruturação do sistema nativo, mortes e imposição de uma nova percepção de mundo.

Estava em curso a configuração de um novo sistema, de um “novo mundo” e com o traslado compulsório de povos africanos que foram escravizados, podemos afirmar que a formação da sociedade brasileira é marcada pela contradição, pelo conflito e pela miscigenação. Ao longo dos séculos, uma das características da sociedade que foi se constituindo é ser relacional.

Uma sociedade relacional significa que nela são predominantes as relações afetivo-familiares e a pessoalidade que inunda todas as instâncias da vida social e institucional. Essa característica é abordada pelo historiador Sérgio Buarque de Holanda, no clássico Raízes do Brasil, no qual afirma que na sociedade brasileira, o mundo privado se sobrepõe ao mundo público, e daí pode-se identificar o homem cordial, aquele que privilegia seus interesses (ou do seu círculo social) em detrimento do interesse público ou coletivo.

A cultura brasileira é resultado de um caudal de elementos construídos e agrupados ao longo do tempo e não é possível dizer que a identidade é unívoca. Ela é uma construção social e histórica que, à medida que, os sujeitos mudam suas percepções e suas práticas, também se alternam. E no conjunto da sociedade, podemos identificar alguns traços presentes na cultura brasileira, uns aceitos, outros contestados, porém ativos nas diversas dimensões do cotidiano. Quem não conhece a corrupção, o jeitinho, a malandragem, o favor, os direitos? São mencionados quase diariamente nos veículos de mídias, nas instituições, nas famílias e nas inúmeras relações estabelecidas entre os sujeitos. Como defini-los?

  • Direitos são as conquistas e liberdades garantidas por lei de cada sociedade. São civis, políticos e sociais.
  • Favor é o que se presta a alguém sem interesse ou obrigação.
  • Jeitinho é o modo de tornar em benefício próprio uma situação contrária ou valer-se de diferentes mecanismos, recriando a situação, sem, necessariamente, burlar a norma.
  • Malandragem é o comportamento individualista que busca obter vantagem, de forma escusa e sutil, sem importar-se com outrem.
  • Corrupção é o ato ou efeito de perverter/deturpar algo ou alguém com a finalidade de obter vantagem por meios ilegais ou mesmo ilícitos.

Podemos nos apropriar de Roberto DaMatta que com o livro O que faz o brasil, Brasil?, elabora uma interessante abordagem a respeito das relações dualistas que marcam o país, saindo do brasil, substantivo comum que dá nome a uma madeira, a Brasil, substantivo próprio que nomeia um país, sua gente, seus valores, sua identidade. E como é esse Brasil? Na dimensão política é marcado pela negociação e pela conciliação; na economia a lógica estatizante convive com a capitalista liberal; o erudito e o popular, a liberalidade e o conservadorismo estão presentes na cultura; e no corpo social vê-se o antigo e o moderno, o relacional e o legal. E em todas as dimensões nem sempre os pares coexistem de modo pacífico ou coerente. E nessa relação, às vezes conflituosa, às vezes harmoniosa, às vezes obscura que identificamos os traços anteriormente apresentados.

Na cultura brasileira, a casa e a rua são “dois lados da mesma moeda”, isto é, o público e o privado se enlaçam. Na casa somos pessoa, identificados por nome e sobrenome, e na rua, indivíduo portador de um número de CPF. No espaço privado temos atenção e privilégios, ao passo que no público somos legalmente iguais e sujeitos às mesmas normas e regras. No entanto, nossa sociedade relacional criou seus artifícios denominados modos de navegação social.  

A frase de Frei Vicente do Salvador, escrita em 1627: “No Brasil, ninguém é público porque todo mundo é casa”, indica como nossas relações foram se configurando e ainda é válida para demonstrar como não conseguimos separar as dimensões do público e do privado. O personalismo transcende valores jurídicos, morais e éticos, prejudicam a democracia e o bem comum visto, com frequência, não haver coerência entre a legalidade e os hábitos da vida prática.

No cotidiano, os sujeitos vão respondendo às demandas que se defrontam e ressignificando princípios, normas, proibições. É parte da existência e cada sociedade, grupo e sujeito se apropria de seu universo sociocultural para saciar suas necessidades (de diferentes ordens). A saúde é um direito social garantido no artigo 196 da Constituição brasileira. Porém, o acesso a esse direito nem sempre está assegurado, dada a falta de hospitais, médicos e atendimento. Daí, uma estratégia é, se possuir um conhecido (ou um amigo de um conhecido) que trabalha no posto de saúde, consegue agendar uma consulta mais rapidamente do que aguardar a fila comum. É o jeitinho que, aparentemente, não prejudica o próximo e garante uma vantagem pessoal ao interessado. Ah, se o agendamento foi realizado pelo conhecido (colega, vizinho, parente), coloca o beneficiado em uma situação de quem obteve um favor e este, ensinam os mais velhos, é uma dívida que nunca se paga. Em algum momento, a qualquer tempo, o outro pode também precisar de um favor e requererá que seja retribuído. Por último, podemos chegar ao extremo, de que para conseguir o agendamento da consulta, o interessado ofereça dinheiro ao atendente do posto de saúde, é corrupção. Caso o atendente recuse ser corrompido, em uma tática “marota”, nosso personagem fictício simule estar passando mal para ser atendido em regime de urgência, antes de todos que ali estão aguardando. Pura malandragem e, ao final, ainda relatará aos conhecidos como levou vantagem, afinal “o mundo é dos espertos”.

É provável que o leitor discorde das definições atribuídas ou que considere muito tênue a diferença entre um e outro. Não há problema, as humanidades não se preocupam com o absoluto e, sim, com a verossimilhança e na narrativa acima, percebemos o quanto a realidade pode ser complexa e multifacetada. O fato de um sujeito histórico (pessoa) ser cristão não o exime das virtudes e dos vícios que possui a cultura. E como ensina o missionário e missiólogo brasileiro, Ronaldo Lidório:

O evangelho é supracultural (comunicável a todos os povos), cultural (revelado ao homem em sua história), multicultural (atrai a Cristo pessoas de todas as nações), intercultural (os salvos em Cristo tornam-se um só povo em Deus), transcultural (deve ser levado de uma cultura para outra) e contracultural (confronta o homem em seu próprio contexto e modo de vida). O evangelho de Cristo confronta, transforma e liberta (Ap 5.9; At 1.8; Jo 1.14; Cl 3.11; At 26.18).           https://ronaldo.lidorio.com.br/wp/

Diante de situações que transgridam as orientações da Palavra de Deus, o aspecto contracultural deve ser enfatizado e considerando que a cultura é uma espécie de óculos pelos quais enxergamos o mundo, o cristão deve estar atento aos modos com que se apropria das representações e práticas culturais de sua comunidade local, nacional e (por que, não?), global.

Não há sociedade perfeita e isenta de problemas, os modos de navegação social são estratégias que extrapolam o ideal de comportamento que a sociedade criou para os sujeitos e os grupos que a constituem. O ideal parece ser árduo de ser alcançado uma vez que os anseios e as carências são diversos, então o real possui outras nuances e vai se transformando, adequando-se. Entre o ideal e o real, o cristão tem o padrão bíblico a observar, ou seja, algo que social ou culturalmente é aceito, pode ser reprovado pelas sagradas escrituras. Se a cultura são os óculos que vemos o mundo, precisamos colocar a palavra de Deus como a lente que torna lúcida a visão. 

O cristão precisa estar atento à forma como está conduzindo seu viver, suas práticas cotidianas, seu comportamento, seu relacionamento com o outro e com o próprio Deus. Seria adequado solicitar a um cristão amigo – político ou servidor – que agilize um processo em repartição pública para que uma petição seja solucionada rapidamente? O pagamento de valor monetário ao examinador para obtenção da carteira de habilitação é admissível? Ao receber um troco em dinheiro e perceber que o valor é maior que o devido, é normal calar e aceitar? Tendo que enfrentar uma fila enorme, mas estando com muita pressa, se encontrar uma pessoa conhecida que está bem à frente, e solicitar-lhe que execute a tarefa necessária, é honesto com os demais que também aguardam? Situações corriqueiras, respostas diversas e penso que o leitor conheça outros casos parecidos com os descritos.

E há episódios no cotidiano da igreja. O apoiador financeiro que pensa poder interferir no trabalho do missionário, direcionando suas ações e requerendo declarações do que é realizado e o destino dos valores empenhados. Aquele que por cooperar na igreja, participando de suas inúmeras atividades, crê que Deus deve abençoá-lo mais que a outrem. Ou por considerar-se fiel, não enfrentará grandes problemas, porque Deus o livrará de qualquer infortúnio. A oração do fariseu e do publicano ilustra o desejo de reconhecimento que pode estar abrigado no coração (Lc 18.9-14). Enquanto um apresenta a Deus um “relatório” de suas boas ações, o outro reconhece sua condição de pecador e clama por misericórdia.

Não raro, ouvimos de estratégias utilizadas para obter o favor divino: jejum absoluto de dias, “oração forte” para abrir caminhos, promessas de contribuição (financeira ou ações), abstenção de algo, enfim, gestos dramáticos na tentativa de convencer a Deus de realizar o que se deseja, uma espécie de “teologia do toma-lá-dá-cá”. E não tendo êxito nas petições, cristãos frustrados deixam de seguir a Cristo, o que demonstra imaturidade e se esquecem do princípio “quer comais quer bebais, ou façais outra qualquer coisa, fazei tudo para glória de Deus” (1 Co 10.31).

A vida cristã deve glorificar a Deus e não ser a busca pelo reconhecimento, pela autorrealização ou satisfação de interesses individuais. As palavras de Jesus são irretorquíveis, absolutas: “Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, e tome cada dia a sua cruz, e siga-me. Porque, qualquer que quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas qualquer que, por amor de mim, perder a sua vida, a salvará” (Lc 9.23-24). Para essa jornada não há modos de navegação ou atalhos.

Nas relações interpessoais, nos grupos sociais, inclusive na igreja, as ações e suas implicações revelam muito dos modos como os sujeitos estão inseridos no universo cultural, bem como as táticas utilizadas para solucionar as dúvidas, as indagações, os problemas, procurando uma vivência mais tranquila, sem muitos sobressaltos. E durante esse processo, para cada demanda apresentada, ao longo da trajetória histórica, foram criadas táticas, tanto aquelas tidas por honestas e ideais, quanto os modos de navegação social que extrapolam a normalidade, o esperado.

Quando um membro da igreja que almeja alçar um lugar no ministério pastoral, procura estar em evidência diante dos demais para ser reconhecido e, posteriormente, não serve à igreja, ele foi desleal, alcançou seu objetivo, mas é reprovado pelos homens e por Deus.  A parábola do filho pródigo também nos ensina – Lucas 11.15-32 – uma lição. O cristão de décadas que se sente ofendido ao ver um cristão mais novo ser abençoado, porque parece pensar que teria mais direito que o outro que serve a menos tempo. E o que dizer daquele que jejua como recurso para obrigar a Deus realizar sua própria vontade, um “jeitinho” de convencê-lo a ser favorável?

E consideremos a hipótese de que na igreja existe uma pessoa que precisa de auxílio, alguém se dispõe e o ajuda; no entanto este alguém, em outro momento, literalmente, cobra do primeiro que também lhe ajude, visto que ele já o fez. Não é o que a bíblia recomenda, como na parábola do credor incompassivo de Mateus 18.23-35. Alcançar os povos não alcançados é uma meta urgente, porém subornar um servidor da autoridade competente para obter autorização e entrar em uma nação indígena não é uma cogitação plausível. Ao contrário da máxima de Maquiavel, os fins não justificam os meios.

Como dito anteriormente, não há sociedade perfeita, nem sistema cultural ideal. É fundamental que o cristão tanto o natural de uma sociedade relacional quanto o de uma sociedade racionalizada e burocrática, tenham a palavra de Deus como cláusula pétrea em todas as dimensões que se move.

Não se envia um missionário para o campo simplesmente porque parece ter perfil ou por ser ligado a alguma liderança. Ser missionário envolve preparo teológico, missiológico, psicológico, emocional, cultural, o que requer planejamento e investimento de tempo, esforços e disposição. Atuar em campo missionário tem desafios de diferentes ordens e o “jeitinho brasileiro” não é a resposta. A imersão, adaptação, aprendizagem dos aspectos socioculturais, a formação das redes de contato e o desempenho na evangelização exigem um trabalho sério e dedicado. E uma vez atuando, esperar que o missionário suporte todas as agruras do trabalho sem respaldo, é desconsiderar a responsabilidade da igreja local que o envia e deve zelar. Não é normal que o missionário passe necessidades que a igreja se incumbiu de saciar.

Uma herança cultural dos tempos coloniais parece querer manifestar-se negativamente: aquele que contribui com o sustento financeiro de um missionário que quer interferir no trabalho, fazer escolhas, direcionar recursos e atividades, como fazia o senhor e proprietário de terras que marcou a economia brasileira até o século XIX. Ora, o missionário não é um funcionário de apoiador, é um cristão enviado por uma igreja ou agência mantenedora. É a esta que deve responder. O missionário, por sua vez, não é um vip, pessoa distinta e com mais direitos que os demais. Nele não comporta traço de arrogância, pois está vinculado a um projeto traçado por quem o enviou e que deve executar.

A despeito de quaisquer traços positivos ou negativos da cultura, perseguir ser e estar “à medida da estatura completa de Cristo” (Ef 4.13) é o parâmetro porque o maior objetivo é a glória de Deus.

Colunista: Sandra Mara Dantas

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