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No dia da Consciência Negra, uma carta para a sociedade brasileira

Vanicléia Silva Santos*

Este texto não é sobre um homem.  Este texto não é sobre um incidente isolado. Este texto é sobre o racismo sistêmico e estrutural que afeta todas as pessoas negras do mundo.

No Brasil, o assassinato de jovens negro é “mato”, para usar uma expressão popular da juventude negra peririca. Acabo de ver a notícia que João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, foi espancado até a morte pelos seguranças do supermercado Carrefour de Porto Alegre, uma das cidades mais branca do Brasil. Bateram nele até mata-lo asfixiado. O vídeo é um filme de horror: o chão do Carrefour jorra o sangue de um homem negro, abatido que nem cão por vários homens e assistido por um mulher que tenta evitar a filmagem.

Em fevereiro do ano passado, Pedro Gonzaga um jovem negro de 19 anos, foi assassinado dentro do Supermercado Extra no Rio. O policial o enforcou com uma “gravata” até matá-lo asfixiado. Há três anos, em fevereiro de 2017, seguranças e funcionários do Habib’s de São Paulo, agrediram João Victor Souza de Carvalho, que faleceu logo depois. Ele era um adolescente pobre de 13 anos de idade, que pedia comida na porta da lanchonete. Ninguém até hoje foi responsabilizado por isso.

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Deixe-me relembrar um outro fato recente: no dia 08 de março de 2020, a professora Lucimar Rosa Dias (Universidade Federal do Paraná), ao sair do Mercado Rei do queijo, em Curitiba, com suas compras, foi seguida pelos seguranças que a acusaram de ter furtado algo. Além de terem aberto sua sacola na rua, os seguranças a conduziam de volta ao mercado, pois queriam ter certeza que ela não havia furtado. Fariam aquilo com uma mulher branca? Jamais!

Sabemos que supermercados treinam seus funcionários para prestarem atenção nas pessoas “suspeitas”. Quem são as pessoas suspeitas?  Homens e mulheres negros. O mais bizarro é que as pessoas que trabalham na segurança são, em geral, também pessoas negras. Isto é parte do racismo sistêmico que afeta pessoas negras no mundo inteiro, inclusive no Brasil.

Ao vestirem a farda da empresa ou da polícia, homens negros de classes populares, se colocam em outro lugar racial/social. Para provarem que são diferentes dos negros, agem com mais violência contra negros e negras. Sob o pretexto de “segurança pública”, protegem o patrimônio/propriedade privada, o capitalismo. Assim, o racismo, o genocídio do povo preto e a proteção da propriedade privada não são coisas separadas. Capitalismo e genocídio negro são partes da mesma moeda.

Por isso, repito: este texto não é sobre um homem.  Este texto não é sobre um incidente isolado. Este texto é sobre o racismo sistêmico e estrutural que afeta todas as pessoas negras do mundo.

Os “Condenados da Terra”

Há seis meses, o mundo ficou chocado com a filmagem de um policial com as mãos no bolso, olhando para os lados, com uma expressão fria, como se nada estivesse acontecendo. Mas o joelho do policial estava pressionando o pescoço de um homem negro. Era George Floyd, que, dizia que não podia respirar. Mas isso não comoveu o policial que matou Jorge Floyd asfixiado, sob as lentes de uma câmera.

O mundo se chocou com a filmagem daquele ato de brutalidade. Um homem assassinado sob os olhos de outro policial e também das pessoas que passavam e viram aquela cena.

Em todos os lugares do mundo, sabemos que pessoas já nascem sentenciadas à morte pela cor de sua pele. Em vários lugares do mundo, ter a pela negra é como carregar uma sentença de pena de morte que está prestes a ser executada.

A filmagem do assassinato de George Floyd levou o povo às ruas. Revoltadas, as pessoas queimaram carros, inclusive viaturas da polícia, queimaram prédios, quebraram lojas, promoveram saques. Mobilizadas pelo movimento “Vidas Negras Importam” [Black Lives Matter]  gritaram: Sem justiça, sem paz! O nome de Floyd ecoou forte, inclusive nos ouvidos do presidente americano, um supremacista branco, que defendeu a ação da polícia. Os protestos duraram semanas, não somente em Minneapolis, mas na maioria das cidades dos EUA, assim como em vários países do mundo.

A referência ao “Vidas Negras Importam” ecoou nos quatro cantos do mundo. Houve uma movimentação global de pessoas que foram para as ruas de cidades em todo o planeta. Do Brasil à Finlândia. Da Nigéria à Hong Kong e Austrália. O mundo inteiro tomou algumas horas para reclamar contra a violência da polícia. Pessoas de todas as partes do mundo se manifestaram contra a desigualdade racial que afetam a todos, em diferentes contextos.

Um exemplo disso foram os protestos que acontecem na Nigéria e que tomaram as redes sociais nas últimas semanas. O principal motivo do protesto é a violência da polícia, a SARS, o Esquadrão Especial Anti-Roubo. Esse Esquadrão foi criado para combater crimes, mas especializou-se em prender, torturar e subornar pessoas para extorquir dinheiro das famílias das vítimas. Uma das vítimas da SARS foi Chijioke Iloanya, 20 anos. Ele foi preso há meses pela SARS ao sair de uma festa infantil e nunca mais foi visto. O SARS é contaminado pela corrupção, pela violência excessiva contra os cidadãos da Nigéria e pela negação da humanidade das pessoas negras. Estamos falando de um dos países mais populosos da África.

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O racismo sistêmico

A violência sistêmica contra pessoas negras tem raízes no tráfico de escravos, no colonialismo na África e nas teorias raciais que deixaram marcas em todas as partes do mundo, na África, nas Américas, na Ásia, na Europa e na Oceania.

O assassinato de jovens negros comove mais parentes de vítimas e a militância negra. Nem todas a pessoas negras se comovem, porque, assim como os policiais negros, estas pessoas não têm empatia pelo genocídio da população negra porque acham que as pessoas Negras são assassinadas porque estavam no lugar no errado, moram no lugar errado, estavam fazendo alguma coisa errada e que a polícia só está fazendo o seu “papel”.

Muitas pessoas Negras pensam assim porque o racismo é sistêmico. Para explicar isso, precisamos esclarecer dois pontos aqui: raça não existe, pois só existe uma raça, a humana. Mas, quando brancos racistas, baseados na desgraça de um pseudo-racismo criaram teorias para explicar que havia hierarquias entre seres humanos de cores diferentes, criaram também as bases do racismo que nos condiciona hoje. Assim, pessoas Negras e brancas reproduzem a desgraça do racismo. Portanto, não existe raça, mas existe racismo! Este é o nosso nó. Este é um problema que precisamos enfrentar.

Mas, essa luta não compete apenas às pessoas negras. Compete, principalmente, às brancas. Foram os brancos quem criaram as teorias raciais. Os brancos criaram o racismo. Como alguém já escreveu. O racismo é um cachorro criado pelos brancos e esse cachorro morde as pessoas negras. Portanto, se vocês quiserem mudar esse sistema racista, eduquem o cachorro de vocês ou matem esse cachorro que existe dentro de vocês.

O silêncio da sociedade  

O racismo estrutural faz com que pessoas negras e brancas fiquem em silêncio diante de situações de racismo e de violência contra pessoas negras.  O racismo estrutural faz com que instituições publicas e privadas ignorem o que acontece nas ruas. Contudo, pessoas e instituições devem chamar por justiça.

Do que adianta as universidades e seus professores se colocarem como autoridades sobre determinados assuntos e gritarem que querem um estado democrático, mas NENHUM reitor ou reitora de NENHUMA universidade se pronunciam contra a violência?

Porque nenhuma empresa do setor privado se pronunciou ou se pronuncia para condenar esse tipo de atitude do Carrefour ou Extra? As empresas não se pronunciam porque concordam e são cúmplices do tipo de abordagem que é feita sistemicamente contra jovens negros e negras dentro das lojas e nos estabelecimentos públicos.

Também não adianta o Carrefour, o Extra e outras empresas, grandes ou pequenas, fazerem uma “nota de repúdio”, e no dia seguinte manterem as mesmas práticas discriminatórias e violências contra as pessoas negras. Nota de repúdio sem uma ação efetiva contra o racismo é hipocrisia!

Vamos ao ponto: este texto não é sobre uma pessoa. Esta análise não é sobre um incidente isolado na Nigéria, nos Estados Unidos, no Brasil ou qualquer outro lugar, porque não existem casos isolados de racismo. Não existem fatalidades. Não existem acidentes. Existe racismo estrutural. Se reconhecermos isso, é possível pensar em outras alternativas para uma sociedade anti-racista.

Sugestões de práticas antirracistas:

Primeiramente, devemos BOICOTAR lojas e qualquer espaço que manifestem qualquer tipo de conivência com atitudes discriminatórias. Não vamos gastar nosso suado dinheiro nestas lojas que matam jovens negros. De minha parte, nunca mais botarei um pé no Extra ou no Carrefour. Capitalistas só aprendem a dialogar quando são afetados financeiramente.

Estabelecimentos comerciais não devem treinar seus funcionários para destratarem ou desconfiarem de pessoas negras. O protocolo respeitoso deve ser igual para todas as pessoas.

Pessoas brancas devem se manifestar ao presenciarem situações de racismo, pois a branquitude lhes dá mais autoridade do que a uma pessoa negra.

Eu tenho declarado em minhas aulas, palestras e nas redes sociais: intelectuais precisam tomar seu lugar na luta contra o racismo, a opressão e a violência sistêmica contra a população negra. Em um brilhante texto “No Humans Involved, An Open Letter to My Colleagues”, a pensadora caribenha Silvia Wynter, afirma que a polícia/Estado tem um projeto claro de matar jovens negros. Então, ela faz uma provocação: a “academia precisa ser interrogada pelas maneiras que discursivamente ignora, legitima e, portanto, cria/ sustenta os tipos de hierarquias sociais que inevitavelmente significam violência racial (…)”.

Nós, intelectuais, de todas as áreas, precisamos discutir sobre o racismo em nossas aulas. Estudantes de todos os cursos devem aprender sobre as raízes da violência no Brasil. Todos devem aprender sobre os privilégios da branquitude. Se não, continuaremos reproduzindo padrões de exclusão, naturalização do racismo, naturalização da ausência de pessoas negras em cargos de liderança, naturalização das ausências de estudantes e professores(as) negros nas universidades e em escolas privadas. A criança branca que cresce numa gaiola dourada rodeada de pessoas igualmente brancas, vai reproduzir naturalmente a exclusão quando tiver acesso ao poder.

Pouco vale declarar que se você sabe tudo sobre determinado assunto, que você é o maior cientista das galáxias se você não tiver solidariedade e empatia com as pessoas negras que sofrem violência todos os dias.

Devemos ensinar que as disparidades raciais é um dos desafio mais significativo enfrentado no Brasil desde o fim da escravidão. As populações indígenas e negras do Brasil tem menos acesso do que a população branca às medidas de bem-estar social, como saúde, formação universitária, renda e casa própria.  O racismo histórico e as disparidades socioeconômicas na cidade explicam porque pessoas negras são abatidas como cães nas ruas.

Para concluir, devemos educar as pessoas sobre as questões raciais. A violência tem cor no Brasil. A pobreza tem cor no Brasil. A prisão tem cor no Brasil. Então, precisamos entender as origens dessas desigualdades. Manter-se ignorante sobre isso é ajudar a manter as relações desiguais.

Para concluir, o dia em que se celebra a Consciência Negra no Brasil faz referência ao dia da morte de Zumbi dos Palmares. Zumbi foi morto pelas forças do Estado enviadas para acabar com Palmares, um projeto de sociedade sem escravidão. Portanto, celebrar o dia de sua morte é celebrar a luta pela liberdade. O dia da consciência negra é dia de firmar a resistência contra todas as formas de opressão.

Comecei esse texto dizendo que este texto não era sobre um homem e nem sobre um incidente. Esse texto é um convite para a construção de uma sociedade antirracista.

Como disse Bob Marley, vai ter guerra enquanto as pessoas continuarem a serem tratadas como cidadãos de primeira e segunda classe de qualquer nação. Vai ter guerra enquanto continuarmos pensando que existem pessoas inferiores e superiores baseadas na cor de suas peles.

Vanicléia Silva Santos é professora de História da África da UFMG. Atualmente, está licenciada de seu cargo. Trabalha na Universidade da Pensilvânia, EUA.

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