sábado, maio 4Notícias Importantes
Shadow

George Floyd e Eu

Como artista cristão de hip-hop, tenho tido o privilégio de proclamar a Cristo com minha música há muitos anos. Um dos aspectos encorajadores e surpreendentes desta jornada tem sido ver como o Senhor usa a música para estabelecer conexões ultrapassando barreiras étnicas. Antes da recente pandemia, um concerto cristão de hip-hop era muitas vezes uma bela imagem da diversidade da nova terra, com pessoas de muitas esferas de vida unidas em torno da mensagem de Cristo e Ele crucificado. Em muitas ocasiões, fiquei maravilhado com a realidade de que eu, um homem negro de Philadelphia, que cresceu imerso na cultura hip-hop estava junto a irmãos e irmãs de diferentes etnias, idades e culturas fixando juntos nossos olhares em Jesus.

Ao longo dos anos, ouvi de muitas pessoas que elas foram afetadas pelas verdades contidas na minha música, mesmo que o hip-hop não fosse sua preferência cultural natural. Sempre que ouvia isto, ficava impressionado com o poder e a beleza da mentalidade comum. Ficou claro para mim que compartilhávamos uma ênfase específica na música — a glória de Deus, a supremacia de Cristo, a centralidade da cruz e a importância da teologia bíblica. Pela graça de Deus, lutarei por todas estas coisas até que o Senhor me leve para o lar.

Mas uma das coisas dolorosas que descobri nos últimos oito anos, desde a morte de Trayvon Martin é que é possível concordar nestas coisas e ainda estar em um lugar completamente diferente quando se trata da questão da injustiça racial. Só porque tomei uma decisão intencional de me concentrar naquilo que é “de primeira importância” (1Co 15.3) não significa que não haja outras coisas importantes que necessitam ser abordadas na igreja. Também não significa que ser cristão me isentou da realidade de ser um homem negro nos Estados Unidos e de todo o estigma que disto advém.

Empatia, Compreensão, Unidade

Após o assassinato de George Floyd, minha esposa e eu recebemos um e-mail de uma irmã, em Cristo, branca. Eu havia hesitado em deixá-la saber como eu estava me sentindo, por medo de ser mal compreendido e, francamente, por causa da exaustão emocional. Mas quando comecei a escrever, derramei meu coração de uma maneira que nunca antes havia articulado de uma só vez. Fui encorajado por pessoas ao meu redor a compartilhar isto publicamente.

Ao fazê-lo, entendo que não falo por todos os negros sobre esta questão, embora muitos possam compactuar com a minha experiência. Reconheço também o risco ao me expor vulneravelmente numa era de mídias sociais, trolls online e vigilantes de teclado. Mas se isto puder ajudar a promover empatia, compreensão e unidade no corpo de Cristo, vale mais do que a pena. Aqui está o que compartilhei com ela.

Irmã, vou te dizer como estou me sentindo. E ao lhe contar isto, por favor entenda que sou incapaz de completar esta mensagem sem chorar. Há uma parte de mim que diz: “Poupe-se da dor, Shai. Não vale a pena.” Mas tomei a decisāo de não dar ouvidos a essa parte de mim porque eu a estaria roubando da oportunidade de “carregar os fardos uns dos outros” e “chorar com os que choram” — e tenho certeza, como irmã em Cristo, você quer fazer exatamente isso.

Irmã, estou com o coração partido e devastado. Sinto-me eviscerado. Não tenho conseguido me concentrar em quase nada desde que eu vi o terrível vídeo do assassinato de George Floyd. A imagem daquele policial com a mão no bolso enquanto ele calma e insensivelmente espremia a vida daquele homem que implorava por sua vida é uma imagem que vai me assombrar até o dia em que eu morrer. Mas não é só o vídeo deste incidente. Para muitos negros, nunca se trata de apenas um incidente. Assim como não se trata apenas dos vídeos de Eric Garner, Tamir Rice, Philando Castile, Sandra Bland, Laquan McDonald, Walter Scott, Rodney King, etc., etc., etc., etc.

Isto se trata de como ser um homem negro nos Estados Unidos moldou tanto a maneira como eu me vejo e a maneira como os outros me tem visto durante toda a minha vida. Se trata de ter sido mandado sair da loja de tênis quando tinha 12 anos, porque eu estava demorando demais para decidir qual tênis comprar com meu dinheiro de aniversário e a vendedora branca achou que eu estava na loja para roubar algo.

Se trata de quando fui algemado e jogado no banco de trás de um carro da polícia ao caminhar pela rua durante a faculdade, e depois esperar que um casal branco viesse identificar se fui eu ou não quem cometeu um crime contra eles, sabendo que se eles dissessem que havia sido eu, seria imediatamente levado para a cadeia, sem mais delongas.

Trata-se de andar na rua quando jovem e começar a perceber que as pessoas brancas, especialmente as mulheres, atravessavam para o outro lado da rua para evitar passar por mim — e eu mesmo começando a cruzar preventivamente para o outro lado para lhes poupar o trabalho de ter medo e me poupar da humilhação daquela transação silenciosa.

Se trata de fazer uma viagem de carro com meus filhos para visitar a família de Blair em Michigan — e meu maior medo ser detido pela única razão de ser negro, retirado do carro, algemado, e sentado ao lado da estrada, totalmente castrado e humilhado com meus meninos olhando para fora da janela, apavorados — o que foi exatamente o que aconteceu com um bom amigo meu quando ele saiu com sua família em uma viagem de carro.

Trata-se do esgotamento de sentir constantemente que tenho que afirmar minha humanidade diante de alguns brancos que esteja conhecendo pela primeira vez, para que eles saibam, “Ei! Não sou uma ameaça! Você não precisa ter medo. Se você ficar me conhecendo, tenho certeza que temos coisas em comum!”

Trata-se de às vezes eu pedir à minha esposa para fazer coisas em certas situações de atendimento ao cliente, já que sei que ela provavelmente será tratada melhor do que eu.

Trata-se de tomar emprestado um balanço de bebê de uma amiga branca no nosso subúrbio de maioria branca de Washington e ela me dizer: “Claro que pode pegar emprestado. Eu tenho que sair, mas vou deixá-lo na varanda para você. Basta ir pegá-lo” — e então sentir palpitações cardíacas quando meu carro se aproximava de sua casa, me perguntando se deveria ou não pegar o balanço e ficar apavorado ao subir os degraus que alguém pudesse pensar que eu o estava roubando e chamasse a polícia.

Trata-se de intencionalmente me assegurar que os bancos das crianças estão no carro, mesmo que as crianças não estejam, de modo que quando (não “se” —acontece o tempo todo) for parado pela polícia, eles talvez vão notar os banquinhos no carro e também a aliança de casamento na minha mão, (ambas as māos visíveis no volante conforme me ensinaram e não movê-las até que me digam para fazê-lo e mesmo assim, de uma maneira exageradamente lenta) e talvez pensem consigo mesmos: Este homem é casado com uma família e filhos pequenos como eu. Talvez ele queira ir para casa em segurança para a família dele, tal como eu.

Trata-se de ter que explicar ao meu filho de 4 anos em sua escola cristã, de maioria branca, que as crianças que riram dele por ter pele marrom estavam erradas, que Deus o fez à sua imagem, e que sua pele é linda, após ele me dizer “Papai, eu não quero pele marrom. Quero pele branca.”

Trata-se de ter o que parece ser uma verdadeira comunhão com meus irmãos e irmãs brancos que compartilham a mesma teologia reformada — até que eu menciono racismo, injustiça ou brutalidade policial, quando me encaram ceticamente como se eu estivesse defendendo um “evangelho social” ou fosse algum tipo de “liberal” ou “guerreiro da justiça social”.

E às vezes é sentir que alguns dos meus amigos brancos não estão especialmente interessados em conhecer-me verdadeiramente — pelo menos não de uma forma significativa que possa realmente desafiar seus preconceitos. Em vez disso, parece que eles me usam para se sentirem melhor porque tem um “amigo negro”. Poderia mencionar muito mais. Estas foram as primeiras coisas que me vieram à mente.

Portanto, ao ver um vídeo como o do George Floyd, isto representa para mim a reabertura de uma ferida profunda e o reavivamento de camadas de trauma que aumentam exponencialmente cada vez que um amigo branco bem-intencionado diz: “Todas as vidas importam.” Claro que sim, mas neste país, vidas negras têm sido tratadas como se não importassem há séculos e as desigualdades presentes na justiça criminal, renda, habitação, saúde, educação, etc., mostram que todas as vidas não importam como deveriam.

Portanto, sempre que alguém me pergunta como me sinto com tudo o que está acontecendo, isto é um pouco do que eu trago para consideraçāo. E é uma grande parte de quem Shai Linne é.

De Luto, Mas Com Esperança

Mas este não é o quadro todo. Embora eu esteja profundamente triste, não estou sem esperança. Pessoalmente, tenho pouca confiança em nosso governo ou políticas para mudarem os fatores sistêmicos que contribuíram para a situação de George Floyd. Mas minha esperança não está no governo. Minha esperança está no Senhor. Em um contexto diferente, o profeta Jeremias disse algumas coisas que ressoam comigo ao refletir sobre isto: “Lembra-te da minha aflição e do meu pranto, do absinto e do veneno. Minha alma, continuamente, os recorda e se abate dentro de mim.” (Lm 3.19-20).

Gosto muito do fato de o profeta não minimizar a dor ou agir como se não fosse real. Há três capítulos inteiros de “amargura e fel” — e não há clichês banais envoltos em termos teológicos. Jeremias reconhece o quanto dói e, como resultado, sua alma está abatida. Muitas vezes, quando as pessoas estão sofrendo, podemos desempenhar o papel de amigos de Jó, dizendo coisas que podem ser teologicamente verdadeiras, adicionando ao sofrimento de nosso amigo sofredor. Uma das coisas mais dolorosas que podemos fazer é fazer com que pessoas pranteando justifiquem a sua dor.

Jeremias medita atenciosamente no trauma que vivenciou das mãos do Senhor. Mas então ele faz algo notável no próximo versículo. Ele prega para si mesmo!

Quero trazer à memória o que me pode dar esperança. As misericórdias do SENHOR são a causa de não sermos consumidos, porque as suas misericórdias não têm fim renovam-se cada manhã. Grande é a tua fidelidade. A minha porção é o SENHOR, diz a minha alma; portanto, esperarei nele. (Lm. 3.21-24)

Jeremias toma a decisão consciente de pensar em algo que alimenta sua esperança: o caráter de Deus. Ele considera “as misericórdias” de Deus e a “fidelidade” de Deus. Ele lembra a si mesmo que o Senhor é sua porção. Jeremias sabe que ele e Israel merecem ser consumidos por causa de seu pecado — mas sabe também que o Deus que disciplina é o Deus que salva (v. 26).

A Vida Como “De Costume”

Portanto, irmãos e irmãs, em poucas palavras, sou tão grato por Jesus. Mereço ser consumido, mas não sou, por causa das misericórdias de Deus. É disto que a cruz e a ressurreição se tratam. Minha dor e trauma são reais. Mas minha salvação, em certo sentido, é ainda mais real, porque minha dor e trauma são temporários. Minha salvação é eterna. É por isso que escolho focar no que faço com minha música. É a glória de Deus, a supremacia de Jesus Cristo, a centralidade da cruz e a teologia bíblica que colocam minha experiência como um homem negro nos Estados Unidos em sua perspectiva adequada.

Espero não estar cedendo ao ceticismo ou pessimismo, mas creio firmemente que, a menos que os problemas sistêmicos com o policiamento e com o sistema de justiça criminal sejam abordados, continuaremos a ver esse tipo de coisas nos próximos anos. Meu receio é que a atenção que os protestos geraram acabe por morrer (como sempre acontece), e então meus amigos brancos voltarão à vida “normal”.

Eu no entanto, não tenho este luxo.

Para mim, “vida normal” significa reconhecer que algumas pessoas me percebem como uma ameaça baseada unicamente na cor da minha pele. Para mim, “vida normal” significa preparar meus filhos para tempos vindouros quando não são mais percebidos como menininhos bonitos, mas “bandidos” adolescentes. Muito depois de George Floyd desaparecer das manchetes, ainda serei um homem negro nos Estados Unidos.

Sabem de uma coisa? Agradeço a Deus por isto! Ele sabia exatamente o que estava fazendo quando me fez do jeito que me fez. Apesar dos desafios reais e cansativos que acompanham a minha embalagem exterior, sei que fui feito assombrosamente maravilhoso. E eu não gostaria de ser nada além do que sou: um seguidor de Jesus Cristo que foi salvo pela graça e redimido pelo sangue do Cordeiro — que também tem pele marrom e dreadlocks e canta hip-hop. E Deus escolheu, em sua grande misericórdia, alavancar tudo para Sua glória. Louvado seja Ele.

Traduzido por: Felipe Barnabé

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