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Educação em tempos de pandemia: ‘Vivemos uma crise dentro da crise’

Luiz Felipe Stevanim
Radis

A ausência de investimento adequado na educação, antes e durante a pandemia, levou a um cenário de aprofundamento da exclusão escolar. Essa é a avaliação de Andressa Pellanda, coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, para quem a educação brasileira vivencia “uma crise dentro da crise” com a pandemia de Covid-19. 

A cientista política especialista em políticas educacionais, que também integra a Campanha Global pela Educação, aponta que as desigualdades estruturais “emergiram à superfície” no cenário trazido pelo novo coronavírus. “As políticas adotadas para a educação, como a implantação de educação remota mediada por tecnologias, foram pensadas de forma alheia a essa desigualdade, sem trazer caminhos de solução para os problemas estruturais. E elas não deram certo”, avalia.

Os países que melhor responderam aos desafios da pandemia, de acordo com Andressa, foram aqueles que destinaram financiamento adequado e implementaram políticas com gestão democrática e cooperação. “O Brasil não só é um mau exemplo no primeiro ponto, por conta das políticas de austeridade ainda vigentes e da falta de investimentos adequados, como também do segundo ponto, já que as decisões foram tomadas de forma verticalizada e descoladas da realidade do país”, analisa. 

Segundo ela, durante a pandemia, o Brasil não tem investido na formação de professores e em insumos adequados para a educação, seja para implementar as atividades remotas ou para a reabertura segura com condições sanitárias. “Professores e estudantes, sujeitos nucleares do direito à educação, não foram ouvidos por boa parte das redes de ensino antes de serem implementadas as políticas emergenciais e não estão sendo ainda. O resultado disso é um aprofundamento das discriminações e da exclusão escolar”.

Essa também é a avaliação da Relatoria Especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para o direito à educação, que aponta o Brasil como “mau exemplo” de resposta à pandemia na área de educação por conta do “desmantelamento das políticas públicas”. “Medidas de austeridade e cortes no orçamento dos sistemas públicos de ensino enfraqueceram a capacidade de administrar a crise educacional e garantir a proteção a todos”, afirma o relatório sobre o impacto da Covid-19 na educação, apresentado na 44ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, em 3 de julho deste ano.

No momento da pandemia, é preciso ainda garantir proteção social a estudantes, suas famílias e profissionais da educação, na visão da coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação – para evitar situações que comprometam a segurança alimentar, a saúde e outros direitos, como casos de exploração sexual e violência doméstica. 

A realidade, porém, aponta para um cenário de discriminações e de aprofundamento das desigualdades sociais, educacionais e regionais, como resultado das políticas emergenciais adotadas na educação. Segundo Andressa, esse contexto inclui a tentativa de grupos privados de implantar uma política de educação a distância automatizada, gerando mais exclusão, além da precarização do trabalho dos profissionais do setor. 

“É um cenário grave de redução do direito à educação e é preciso ter em mente que a causa não é só a pandemia, como também o interesse privatista de grupos que defendem uma educação pobre para os pobres e que, ainda por cima, dê lucro para eles”, reflete.

O relatório da ONU sobre o impacto da pandemia no direito à educação cita o caso brasileiro em que medidas de austeridade e cortes na educação enfraqueceram a capacidade de respostas à crise. Como vocês avaliam a resposta brasileira à pandemia no setor de educação?

Os países que melhor responderam aos desafios da pandemia foram aqueles que desprenderam financiamento adequado, que implementaram políticas com gestão democrática e cooperação e que, portanto, têm sistemas públicos fortes. 

O Brasil não só é um mau exemplo no primeiro ponto, por conta das políticas de austeridade ainda vigentes e da falta de investimentos adequados, como também do segundo ponto, já que as decisões foram sendo tomadas de forma verticalizada e descoladas da realidade do país. Na educação, por exemplo, não temos investido em formação de professores, valorização, ou em insumos adequados para a qualidade da educação – seja para serem realizadas atividades remotas, seja para a qualidade da infraestrutura das escolas para a reabertura segura e com condições sanitárias. Ainda, professores e estudantes, sujeitos nucleares do direito à educação, não foram ouvidos por boa parte das redes de ensino antes de serem implementadas as políticas emergenciais e não estão sendo ainda – o resultado disso é um aprofundamento das discriminações e da exclusão escolar.

Quais os impactos das desigualdades sociais, regionais e de acesso às tecnologias digitais entre os estudantes de escolas públicas nesse contexto de pandemia? Como tal cenário dificulta a adoção de medidas de ensino remoto emergencial?

Tenho dito que estamos vivendo uma crise dentro da crise: as desigualdades diversas já são estruturais e só emergiram à superfície nesse momento de pandemia. As políticas adotadas para a educação, como aquelas de implantação de educação remota mediada por tecnologias, foram pensadas de forma alheia a essa desigualdade, sem trazer caminhos de solução para os problemas estruturais. E elas não deram certo, por óbvio. 

Vale lembrar que isso não aconteceu somente pela falta de acesso a tecnologias, mas por uma série de desigualdades pelas quais passam milhões de estudantes, como falta de saneamento, falta de acesso a água e alimentos, falta de ambiente com condições de salubridade e de qualidade em casa para estudos, falta de apoio dos pais e/ou responsáveis (já que muitos sequer são alfabetizados, ou precisam trabalhar cargas horárias exaustivas) etc. 

De um lado, estão alunos e familiares sem informações adequadas sobre o retorno das atividades. De outro, trabalhadores da educação pressionados. Que alternativas podem ser pensadas nesse momento de pandemia para garantir o direito à educação e ao mesmo tempo preservar condições adequadas de trabalho?

Nesse momento de pandemia, a prioridade é garantir as necessidades da base: fisiológicas e de segurança. Assim, é preciso que os estudantes, suas famílias e os profissionais da educação tenham garantia de proteção social tanto no que diz respeito à segurança alimentar e saúde, por exemplo, quanto de saúde e proteção a violações, tais quais trabalho infantil, exploração sexual, violência doméstica, entre outras, que aumentam em caso de isolamento doméstico. 

A escola é um dos aparelhos públicos com maior capilaridade do país e por ela também precisam passar estratégias de proteção, com aprofundamento de vínculos entre comunidade escolar e famílias, de forma a prevenir, monitorar e dar encaminhamento adequado para casos de vulnerabilidade e violações. 

Isso já precisa ser realizado enquanto prioridade sem uma emergência como a que vivemos, mas nesse caso da pandemia é que precisamos dar ainda mais ênfase a esse tipo de abordagem. 

Para pensar a política emergencial de educação a ser adotada em um cenário de pandemia deve-se, portanto, levar em conta o cenário de seguridade social em que a população está inserida em cada localidade, ou seja, caso o cenário de vulnerabilidade seja alto, políticas de educação que exijam insumos não disponíveis não devem ser adotadas, assim como a política educacional não deve ser mais um fator de pressão e estresse emocional e psicológico, mas sim canal de diálogo, apoio e proteção. 

Uma sociedade que coloca o diálogo, a proteção e os vínculos sociais no centro de suas políticas é uma sociedade educadora, já que está ensinando a construção de uma sociedade preocupada com o bem estar e o bem viver de todos, sem discriminações. 

É importante, portanto, pensarmos o direito à educação de forma mais ampla, como ele realmente deve ser, e não em uma caixinha do conteúdo e/ou provas, que invariavelmente estarão atrasadas e não há prejuízo nisso, se considerarmos que a vida e a sociedade são muito mais complexas e vão muito além dessas instituições arbitrárias.

Como o negacionismo em relação à pandemia prejudica a formulação de alternativas que garantam o direito à educação e respeitem o direito à vida?

Por conta do negacionismo em relação à pandemia, estamos fazendo um processo de volta às atividades presenciais muito precipitado e que pressiona para a reabertura precoce das escolas. Assim, diversas redes, inclusive e sobretudo as privadas, têm sido pressionadas a pensar com urgência e com poucos elementos críticos aprofundados um retorno às aulas, que depende também de uma série de condições de qualidade e de financiamento que não temos na grande maioria das escolas do país. 

Uma volta precoce e sem financiamento adequado para condições mínimas de qualidade e sanitárias será um risco muito grave em termos de contaminação e de mortes.

Quando se fala em retorno às aulas, que condições seriam adequadas para garantir o direito à educação sem colocar vidas em risco?

Fizemos um guia sobre Reabertura de Escolas, em que listamos 20 recomendações e essas são as condições que acreditamos serem primordiais. Para acessar: www.campanha.org.br/covid-19.

Por fim, quais os legados e consequências dessa pandemia para a educação no país?

Ainda não é possível falar com nenhuma certeza sobre o amanhã, mas é possível já verificar o que acontece hoje como resultado das políticas emergenciais adotadas na educação: um cenário de discriminações; de aprofundamento das desigualdades sociais, educacionais e regionais; a tentativa de grupos privados com interesses privados de implantar a fórceps uma política de educação a distância automatizada e padronizada, que prescinde do papel dos professores e não tem apresentado alguma evidência de que funciona, gerando ainda mais exclusão; e a precarização do trabalho dos profissionais da educação, que têm sido demitidos, têm sofrido cortes salariais e têm dobrado suas cargas horárias, sem remuneração adequada, formação ou condições de trabalho. 

É um cenário grave de redução do direito à educação e é preciso ter em mente que a causa não é só a pandemia, como também o interesse privatista de grupos que defendem uma educação pobre para os pobres e que, ainda por cima, dê lucro para eles.

Publicado originalmente por Radis.

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