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Desastre em potencial: por que uma vacina não-testada pode agravar a pandemia

Desde o início da corrida pela vacina contra Covid-19, o mundo começou a prestar mais atenção nas etapas do desenvolvimento de um medicamento. Fase 1, fase 2, fase 3 são termos que passaram a fazer parte do noticiário, o que tornou ainda mais surpreendente o anúncio de que a Rússia aprovou uma vacina, batizada de Sputnik V, que não seguiu esse protocolo científico básico.

O mesmo vem ocorrendo no estado de São Paulo, onde o Governador João Doria insiste em anunciar vacinação da população sem a vacina ser devidamente liberada pela Anvisa.

As fases não são enfeite

Você talvez já tenha lido que as fases 1 e 2 dos estudos clínicos servem para entender a segurança de uma vacina, o que é verdade. O que provavelmente não parece claro, é que todas as etapas servem para entender sua segurança; as duas primeiras só detectam os eventos positivos e negativos mais evidentes.

Quando se fala em um estudo de fase 3, o número de voluntários já está na casa das dezenas de milhares, o que indica que os pesquisadores já estão confiantes o suficiente para atingir um número considerável de pessoas. Mas imagine um efeito colateral grave que afete 0,1% dos vacinados: ele pode não aparecer quando o composto é testado em 700 pessoas, mas deve aparecer em testes com 30 mil.

E no caso de um evento ainda mais raro? Eles podem acontecer e não podem ser ignorados diante da dimensão das campanhas de vacinações pelo mundo, que devem alcançar bilhões de pessoas. Mesmo um efeito que atinja 0,01% das pessoas pode ter proporções preocupantes, atingindo centenas de milhares de pessoas.

É por isso que a análise de segurança não para na fase 2. A fase 3 também é usada para detectar potenciais problemas que não foram detectados nas etapas anteriores, porque ao aumentar a sua base estatística, também se aumenta a certeza sobre o objeto de estudo. E existem, sim, casos de estudos que chegaram à fase 3 e precisaram regredir porque se constatou que a vacina não era segura ou eficaz. Não é incomum, inclusive: já aconteceu com pesquisas contra o HIV e Ebola, como explica ao Olhar Digital o professor de imunologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) Sergio Surugi de Siqueira e titular da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa.

Para completar, existe ainda mais uma etapa frequentemente ignorada quando o assunto é vacina: a fase 4. A fase 3 é usada para determinar a liberação pelos órgãos regulatórios, mas o acompanhamento continua após seu lançamento no mercado, justamente para detectar problemas ainda mais raros. Um produto farmacêutico pode ser retirado de circulação se algum efeito grave for detectado que tenha passado despercebido pelas outras três fases de testes clínicos.

Existem medicamentos que precisaram passar por essa situação após concluir com sucesso as três etapas de testes clínicos. Siqueira cita como exemplo o rimonabanto, substância que prometia “secar barrigas”, mas só depois de ser aprovado por agências regulatórias e distribuído comercialmente descobriu-se que ele poderia causar depressão e levar os usuários ao suicídio. O fato de um efeito tão grave não ter sido percebido nem mesmo na fase 3 é uma demonstração do quão inconclusivas podem ser as fases anteriores.

Anticorpo não é garantia

Todos os estudos que estão avançando publicam seus resultados afirmando que suas vacinas demonstraram segurança e provocaram resposta imune do organismo. Isso, no entanto, não significa que os participantes estão protegidos.

A fase 3 serve justamente para descobrir se essa resposta imune realmente é protetora e capaz de neutralizar o vírus. Isso porque, por mais que pareça estranho, existem exemplos de respostas imunológicas que podem não proteger o corpo e até mesmo ser danosas ao organismo. E o maior exemplo é o da dengue.

A dengue é causada por quatro variações de um vírus, um flavivírus. O que acontece é que, se o organismo desenvolve imunidade contra uma destas variações, a infecção pelas outras três tende a ser mais grave, com mais risco de desenvolver a forma hemorrágica, por ação do sistema imunológico. Por isso, uma vacina eficaz contra a doença precisaria imunizar contra as quatro cepas de uma só vez.

Esse efeito, conhecido como potencialização dependente de anticorpos (ADE, na sigla em inglês), é bem documentado na ciência, e ocorre quando anticorpos não-neutralizantes se ligam a um vírus e, em vez de anulá-lo, acabam facilitando sua entrada nas células, tornando a infecção mais grave.

Felizmente, pelo que se sabe sobre os coronavírus, não só o da Covid-19, mas também os causadores de doenças como Sars e da Mers, a ADE não parece ser um risco, como explica Siqueira. Ainda assim, é um exemplo de como “resposta imune” não significa necessariamente proteção contra o vírus.

É na fase 3, que essa eficácia é medida com a divisão de milhares de pacientes em dois grupos, com um deles recebendo um placebo. Se houver diferença de contágio entre os dois grupos, é porque a resposta imunológica realmente é protetora contra o vírus. Qualquer promessa de eficácia antes da realização desta etapa é mais otimismo do que uma análise fundamentada em resultados.

Texto adaptado do Olhar Digital

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