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Sobrevivente do atentado contra Marielle desabafa: ‘Sinto como se estivessem me apagando da história’ – Jornal O Globo

RIO —  Em 16 de março de 2018, a jornalista Fernanda Chaves, de 46 anos, deixou o Rio de vez. Com cerca de 1,65m de altura, precisou se encolher no vão do banco traseiro de um carro blindado, escoltada por dois veículos da Polícia Civil, rumo ao Aeroporto Internacional Tom Jobim, na Ilha do Governador. Por ser verão, vestia jeans e uma blusa de malha fina. Nos pés, uma sandália de plástico. Usava boné e óculos escuros. Saiu às pressas para uma viagem não planejada e, sequer, desejada. Destino: Madri, onde o inverno ainda castigava. Única sobrevivente do atentado contra a vereadora Marielle Franco (PSOL), no qual a parlamentar e o motorista Anderson Gomes foram executados, Fernanda teve que deixar tudo, sem olhar para trás, dois dias após o crime.

Não há um dia sequer que ela não se lembre do “14 M”, referência à data dos assassinatos de Marielle e Anderson: 14 de março. Há três anos, Fernanda foi aconselhada por amigos especialistas na área de segurança, inclusive da Anistia Internacional, a deixar o Brasil, logo após o crime. Depois de quase quatro meses no exterior, e o restante do período vivendo às escondidas, ela sonha, um dia, retomar a vida que tinha no Rio. Para isso, tem que se livrar de algo que ainda a assombra: saber de quem ela precisa se proteger. Mais do que ninguém, a jornalista quer descobrir quem mandou matar Marielle.

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— Estou segurando a onda. Não pude fazer minha mudança. Fui obrigada a sair do país onde nasci por não ser seguro. Não posso morar no Rio só pelo fato de ter sobrevivido a um crime bárbaro, a um atentado à democracia. Eu me sinto aniquilada, como tivessem me apagado da história, da minha história de vida — conta a jornalista.

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Ao relembrar como foram os três anos após os homicídios de Marielle e Anderson, Fernanda fecha os olhos por alguns instantes e gesticula muito. Embora faça terapia e tente manter o foco no futuro da filha Rosa, de 10 anos, recordações do ataque ainda lhe causam agitação. Ela se ressente de não ter se despedido de Marielle, amiga e comadre (a jornalista coordenava o mandato da parlamentar, que era madrinha de batismo de Rosa).

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— Eu me senti impotente logo após o “14 M”. Não pude cumprir o rito da despedida. Não fui ao velório dela, nem ao enterro. Assisti a tudo pela TV. Não estive ao lado da Luyara (Santos, filha da vereadora). Foi tudo muito rápido — conta. — Eu estava no carro com ela vindo da Casa das Pretas, ouvi a rajada e pensei que estava passando no meio de um tiroteio. Mantive a lucidez, para puxar o freio de mão do carro até parar e sair agachada, por imaginar que ainda havia tiros.

Ressentimento

Um dos piores momentos, segundo Fernanda, foi ouvir, no local do crime, um policial militar descrevendo a cena pelo viva voz do celular para um superior. Falando no jargão da polícia, ele anunciou: “duas pessoas vieram a óbito e uma única sobrevivente” (sic). Ela descobriu, assim, de forma abrupta, que a comadre e o motoristas estavam mortos:

— Eu era a sobrevivente e, ao mesmo tempo, uma testemunha. Na verdade, não vi nada, mas estava no carro, vivenciando o terror.

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O ressentimento com o Estado é grande. Começando pelos PMs que sequer lhe dirigiam a palavra ao chegarem à cena do crime. Outra agonia é quando lembra que os policiais ordenaram a saída de “todos” do local, o que representou também a perda de possíveis testemunhas. O giroscópio da viatura policial, em meio à escuridão, aumentava a sensação de medo, na esquina das ruas João Paulo I e Rua Joaquim Palhares, no Estácio, onde aconteceu a emboscada.

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— Depois de passar por uma situação daquelas, não me senti confortável nem de aceitar a água que os policiais depois me ofereceram. Não confiava em ninguém. Estava numa tremedeira louca. Meu marido (Marcelo Salles) chegou em seguida e me levou para casa, onde tomei um banho, e fui para delegacia depor. Repeti o depoimento cinco vezes para diferentes policiais. Fiquei esgotada. Só queria sair dali. Foi quando um amigo me disse: “você tem que sair do país” — relembra.

Em casa, acabou dormindo cerca de uma hora, até o interfone tocar. Era o motorista da van para levar a filha dela, então com 7 anos, para o colégio.

— Caiu a ficha de que teria que deixar tudo — diz.

Visita de Dilma

No dia seguinte ao atentado, numa quinta-feira, ela recebeu as visitas de representantes da Anistia Internacional, do Conselho Nacional de Direitos Humanos e do gabinete do então deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL), com quem trabalhou antes de assessorar Marielle. Todos foram unânimes em orientá-la a sair do Brasil. O primeiro destino era Suíça, mas ela não tinha dinheiro para bancar a viagem. Lá, só teria um local para ficar. A melhor opção foi oferecida pela Anistia, que tem um programa de acolhimento de pessoas em situação de violência, com o apoio de voluntários. A ajuda tinha prazo para durar: três meses.

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Foi quando, na sexta-feira, recebeu uma visita que, segundo a jornalista, lhe colocou no prumo. Segundo ela, a ex-presidente Dilma Rousseff foi à sua casa e fez uma “leitura rápida” da situação:

— Ela disse que se tratava de um atentado político com uma dimensão tão grande quanto o que ocorreu com o líder seringueiro Chico Mendes (ambientalista e ativista político) executado em 1988, em Xapuri, no Acre.

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Fernanda passou quase quatro meses fora, em Madri e Roma, antes de voltar para o Brasil, sempre adotando os protocolos de segurança:

— Nada de redes sociais, de celulares. Imagina isso para um jornalista?

Atualmente, Fernanda trabalha como assessora de imprensa parlamentar, remotamente, algo que a pandemia acabou lhe favorecendo.

Na opinião de Fernanda, o Estado não a protegeu. Fala com mágoa que a Polícia Civil e o Ministério Público do Rio, não a chamaram para acompanhar a investigação.

A promotora Simone Sibílio, coordenadora da Força-Tarefa que investiga o caso, explicou que tem reuniões periódicas com os familiares da vereadora e de Anderson. Já Fernanda, por ter ficado fora do país e, atualmente, se encontrar em local desconhecido, o contato foi evitado por segurança.

Rastros deixados na internet levaram aos suspeitos da execução

Os três anos de investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, completados nesta segunda-feira, foram marcados por uma reviravolta no caso e episódios de obstrução de Justiça. Antes de chegarem a Ronnie Lessa, sargento reformado da Polícia Militar, e ao ex-PM Élcio de Queiroz, como executores, os investigadores seguiram, por sete meses, uma equivocada linha de investigação que tumultuou o caso.

Depois de erros no início da apuração do crime, diante das dificuldades de elucidar a trama pelos métodos tradicionais, os investigadores passaram a adotar medidas mais ousadas para chegar aos autores. Como a quebra de sigilo telefônico não se mostrava suficiente, houve a necessidade de se buscar os dados telemáticos dos celulares e de computadores dos suspeitos, prática até então inédita na resolução de crimes. Foi assim que a polícia e o Ministério Público do Rio, recorrendo a medidas judiciais para obter informações do Google e do Facebook, conseguiram ter acesso às pesquisas feitas na internet pelos suspeitos. Foi descoberto, por exemplo, que Lessa levantou um endereço, no Rio Comprido, onde Marielle esteve na véspera da morte.

No entanto, a fase atual em que se tenta chegar aos mandantes do assassinato da vereadora se arrasta há dois anos. E algumas peças do quebra-cabeças ainda são fundamentais. Na última sexta-feira, por exemplo, o MP do Rio fez acordo judicial com o Facebook para acessar dados das redes sociais de Lessa e Élcio, que possam ajudar a identificar os mandantes. O 4º Tribunal do Júri, onde tramita o processo, havia determinado que o Facebook fornecesse os dados, sob pena de pagar uma multa de R$ 5 milhões. Daí, surgiu o acordo.

— A relação com o Facebook é boa. Os representantes da empresa pretendem nos atender rapidamente. Queremos os dados dos alvos, de janeiro a março de 2018 (data de preparação e execução do crime) — diz Simone Sibílio, coordenadora da Força-Tarefa encarregada das investigações.

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