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Sobre a Polêmica em Torno da Suspensão dos Cultos Religiosos

Vivemos tempos extremos. O debate político sobre os rumos da nação em meio à pandemia parece ter afetado a teologia e prática eclesiástica. Realizar ou não cultos presenciais muitas vezes parece ser mais uma questão ideológica do que pastoral/teológica. Em certos círculos, quem ousar falar em reabertura de igrejas é rapidamente taxado como “negacionista”, um xingamento vazio, ofensivo e sem sentido que de maneira geral não pode ser aplicado a pastores que estão preocupado com a saúde espiritual de suas ovelhas.

É nesse contexto que gostaria de fazer algumas observações sobre a polêmica que voltou com bastante força após as recentes decisões do Supremo Tribunal Federal sobre as proibições de realização de cultos presenciais pelos Estados e Municípios.

Primeiro, do ponto de vista do senso comum: penso que as lideranças eclesiásticas devem avaliar seu contexto e seu público para então tomar uma decisão sobre eventual suspensão temporária de cultos presenciais. O que me parece inaceitável é romantizar as decisões de suspensão e alegar que são feitas como demonstração de “amor ao próximo”, ou, pior ainda, querer obrigar todos a suspenderem seus cultos presenciais, ou, mais inaceitável ainda, achar legítimo que o estado suspenda indefinidamente os cultos presenciais e achar que “está tudo bem”. Muito cuidado aqui para não banalizar a covardia (em alguns casos, mas não todos, é disso mesmo que se trata) e chamar isso de virtude.

Segundo, do ponto de vista jurídico: o estado não pode avaliar o mérito do que acontece quando grupos religiosos se reúnem, e nem externamente definir a não essencialidade ou não disso. Essa é uma questão que tem a ver com a liberdade religiosa, direito fundamental consagrado na Constituição e sempre respeitado de forma exemplar em nosso país.

Se um grupo cristão, por exemplo, entende que o culto é essencial porque algo importantíssimo acontece quando a igreja se reúne, e que eles não podem parar de cultuar jamais, por ser esse seu chamado, o estado não deveria entrar no mérito dessa visão teológica, sob pena de ofensa à liberdade religiosa e até mesmo à laicidade do estado, na medida em que ocorre uma sobreposição sobre a esfera de atuação da igreja.

Restrições sanitárias temporárias são legítimas, quando se pensa na ponderação de direitos fundamentais, mas não a total proibição de reunião presencial, especialmente se pensarmos que em tempos de pandemia as lideranças estão dispostas a seguir uma série de protocolos sanitários, com limitação do número de presentes, distanciamento, uso obrigatório de máscaras o tempo inteiro, etc. Essas medidas, como tem sido demonstrado, já seriam razoavelmente suficientes para evitar a transmissão do vírus. Se não o fossem, sequer deveriam ser impostas pelas autoridades nos demais ambientes com circulação de pessoas.

Aliás, salvo engano, não existem quaisquer estudos conclusivos que demonstrem que igrejas são vetores de transmissão de vírus, mormente quando respeitados os protocolos acima mencionados. Por outro lado, o transporte público, academias, supermercados e restaurantes oferecem muito mais risco de contágio do que igrejas, na medida em que não se consegue controlar com eficácia o distanciamento físico entre as pessoas.

Dessa forma, considerando a liberdade religiosa e um de seus desdobramentos básicos, que é a não interferência do estado em assuntos eclesiásticos e teológicos, proibições absolutas de realização de cultos presenciais não se mostram razoáveis, sendo justa a impugnação judicial de atos normativos que as impõem.

Terceiro, do ponto de vista teológico, e aqui vai o comentário mais importante: me parece que a pandemia tem escancarado a péssima eclesiologia de muitos líderes cristãos.

Como bem resumiu meu amigo Evandro Rosa, “ou você é litúrgico/sacramental, ou você pede o fechamento de igrejas. Os dois não dá!”.

Nesse mesmo sentido, também poderíamos dizer que muitas lideranças são reformadas em sua soteriologia, mas anabatistas em sua eclesiologia.

De fato, a questão fundamental que muitos parecem ignorar é: “o que acontece quando os cristãos se reúnem em assembleia solene?” Se verdadeiramente acreditamos que algo sobrenatural acontece, e que não existem cristãos desigrejados, e que o individualismo dos últimos séculos, ao menos em termos religiosos, é absolutamente inadequado para fundamentar a fé e a natureza da igreja, é impossível defender o fechamento de templos e a proibição de cultos presenciais por causa da pandemia. Mais ainda: é também incoerente ficar muito tempo sem realizar cultos presenciais, mesmo que voluntariamente, pois os prejuízos espirituais certamente virão.

É bem verdade que igrejas do estilo “sensível ao interessado”/autoajuda, cuja concepção de culto muitas vezes se resume a mensagens e músicas inspiradoras, para que as pessoas se sintam acolhidas e aprendam a ser mais espirituais, podem tranquilamente abrir mão de cultos presenciais e substituí-los pelo “culto online”. Afinal, trata-se apenas de mensagens inspiradoras, e mesmo que com algumas limitações, o “culto online” permite obter de alguma forma o resultado amejado. Essas lideranças, ao suspenderem seus cultos, ao menos são coerentes. O mesmo vale para tendências cristãs racionalistas, em que o culto se resume a cantar algumas músicas e uma mensagem didática, sem uma concepção de presença real do divino entre o povo de Deus reunido.

Agora, se cremos que há uma presença divina real no culto, na pregação e nos sacramentos (batismo, ceia), não podemos ficar muito tempo sem celebrá-los. Nesse caso, abrir mão de sua realização expressa uma verdadeira INCREDULIDADE quanto aos efeitos da ceia e do próprio culto cristão. E aqui me parece que reside a incoerência de muitas lideranças cristãs: elas dizem crer na presença de Cristo (literalmente ou espiritualmente) na ceia, mas não veem problema algum em ficar meses a fio sem realizar a sua celebração.

Nesse sentido, acho bastante incoerente, para não dizer algo pior, ver lideranças de igrejas com concepções mais sacramentais (católicos, ortodoxos, luteranos, reformados, anglicanos, metodistas) ou mesmo de concepções “mágicas” de culto (neopentecostais) defenderem o fechamento de igrejas, e a substituição por meses ou até anos a fio dos cultos presenciais em virtude de uma epidemia. Na história da igreja essa é uma postura inédita.

Ao final, me parece que a pandemia tem sido um divisor de águas entre a boa e má teologia de culto, talvez até mesmo entre fé e incredulidade. Creio que também ela tem demonstrado quem de fato acredita que o culto cristão não é apenas uma reunião de autoajuda com palestras inspiradoras sobre espiritualidade, mas sim a reunião física do povo de Deus, em resposta ao seu chamado, na qual o seu Espírito está realmente presente, e sem a qual o seu povo não pode subsistir por muito tempo, ao ser alimentado pela Palavra e pelos sacramentos/ordenanças.

Concluindo, entendo que em certas circunstâncias pode ser adequado suspender os cultos presenciais, principalmente se o público majoritário for grupo de risco. Contudo, essa decisão não pode perdurar por muito tempo, pois do contrário poderíamos estar diante de: a) má teologia de culto; b) simples incoerência com a robusta teologia de culto oriunda da Reforma, presente nas principais denominações; c) medo (pior ainda se for simplesmente o medo das lideranças em relação à sua própria vida. Se for esse o caso, a vocação ao ministério deve ser repensada – Mt 16.25); d) incredulidade, tanto em relação ao que acontece no culto quanto aos sacramentos/ordenanças; d) ideologização e politização na tomada de decisões sobre fechamento de igrejas. Em qualquer dos casos, são os membros que deixam de ser devida e verdadeiramente alimentados. Pagaremos um alto preço por isso.

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